terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Segredo

Faltando menos de dez e mais de cinco anos para eu chegar aos 50, só agora algumas pessoas sabem que eu escrevo.
Se eu tocasse um instrumento, toda a vizinhança saberia. Se fosse portátil, eu seria vista carregando para baixo e para cima (pego carona nas guitarras dos meus filhos e as pessoas olham incrédulas - "será que ela toca?"). Mas o curioso é que eu carrego minha cabeça para todo o lugar que eu vou (alguns dizem que é só porque está presa no pescoço. Maldade!) mas preciso de um tempinho para expressar o que tenho dentro da mente, para poder escrever, à mão ou no computador. Se esse momento não acontece, também não vai acontecer de ninguém ler...E é quase um segredo, pouca gente sabe que estou aqui, cometendo estas frases. Não deixo transparecer que estou passando para um texto o que acontece nos momentos mais corriqueiros da vida...
Tem gente que também brinca disso e sai contando pra todo mundo. Eu não, só confidencio através do blog, para quem quiser ler. Por sua própria conta e risco...

Andando de táxi

Se a delícia de observar as situações para depois escrever não fosse a melhor parte do ofício, deveriam os cronistas fazer um convênio com os motoristas de táxi para captar assuntos. Eles levam um ao cinema, logo depois outro ao velório, sabem muito do que acontece na vida das pessoas. Mesmo involuntariamente, acabam virando personagens de histórias pitorescas. Em muitas situações, se fossem contar apenas que levaram alguém a algum lugar levantariam suspeitas, desvendariam mistérios, explicitariam culpas e assassinariam álibis... E vários hoje dirigem para a população, mas tiveram uma boa escola, lêem bastante, muitos têm um vocabulário bom. Assim é Seu Osvaldo, que me transporta de vez em quando. Nenhuma prosa rebuscada ou erudição no vernáculo, apenas um senhor que teve uma formação fundamental bem feita, como se tinha antigamente, sem precisar desembolsar mensalidades caras. Assim, ele critica os motoristas imprudentes, censura os ciclistas abusados e depois de alguns minutos de conversa, estou desembarcando no meu destino.
Na semana passada ele me levou para a rodoviária de Santos. Ao chegarmos no destino, havia a fila dos carros que encostam para desembarcarem passageiros e eventualmente descarregar as bagagens de quem vai viajar de ônibus. Paguei a corrida e enquanto procurava meu troco, Seu Osvaldo não percebeu que o freio de mão não estava puxado até o fim e só se deu conta que o carro escorregava para trás ao sentir seu veículo encostar levemente no detrás, cujos ocupantes desciam com várias sacolas, enquanto um rapaz permanecia ao volante. Este desceu do carro imediatamente e se pos a esbravejar, dizendo que "o tiozinho tinha que prestar mais atenção, como é que deixa o carro solto, bla, bla bla..." Com a calma que só têm os que são no mínimo sexagenários, Seu Osvaldo me deu o troco, me desejou boa viagem e, só então, depois que eu mesma já havia conferido a inexistência de qualquer estrago, foi olhar o resultado do acontecido na lataria dos veículos. Gentil e polidamente perguntou ao rapaz enfurecido:
- "Tem alguma avaria"?
Mais bravo ainda, o rapaz pergunta:
- "E precisa ter a avaria pra bater"?
Todos ao redor olhavam a cena, mas o esmagamento do nosso idioma só eu ouvi. Pensei em permanecer no local uns instantes, até me certificar que nenhuma confusão se instalaria. Seu Osvaldo não deu continuidade à discussão sobre “a necessidade da avaria para bater”, entrou em seu carro e foi em busca da próxima corrida. Uma vez que não houve nenhum estrago, nem prejuízo, só o nosso idioma restava arranhado e incompreendido, fui, rindo, comprar minha passagem para São Paulo.